CRÔNICA – MEMÓRIA VIVA ENTRE RUÍNAS, MARCHAS E RETOMADAS



Por Alanna Souto Cardoso Tupinambá.

Minhas participações na COP30 foram poucas, quase silenciosas, como quem só pisa onde já havia firmado palavra. Estive nos espaços onde meu compromisso já estava plantado: como liderança do Fórum Parawara, acompanhando as comunidade indígenas ribeirinhas articuladas junto a esse Fórum, especialmente do Xingu , que segue lutando por reconhecimento e demarcação, e enfrentando a indiferença fria da atual Secretária dos Povos Indígenas do Pará, Puir Tembé, cuja seletividade sobre "quem merece ser indígena" tem custado vidas, histórias e direitos.

Enquanto isso, nas margens da cidade e dentro de organizações urbanas Tupinambá de Belém e Santarém, vivi um enredo duro: violências de gênero, disputas de legitimidade e tentativas de silenciamento. Não é fácil admitir que parte do movimento indígena urbano se tornou conivente com agressor, ou que reproduz calúnias e perseguições contra mulheres indígenas — ferindo qualquer tradição, seja matrilinear ou patrilinear. Foi esse desalinhamento ético, essa miopia política e espiritual, que me levou a me afastar definitivamente daquele grupo de lideranças de Belém, tão distante da Mairi que dizem defender e completamente desconectado da comunidade ribeirinha que resiste nas ruínas do Murutucu.

Ao mesmo tempo, cresceu em mim – com a força de um rio em época de cheia – a consciência de que minha luta não é apenas pela demarcação dos contextos indígenas urbanos e periurbanos. É também pela constituição da Universidade Indígena, pela educação escolar indígena que dialogue com as frentes de educação comunitária e pela defesa da memória dos nossos mais velhos. Uma demarcação narrativa séria, que nasce do chão dos territórios e da vida das famílias que, rotuladas como "caboclas", tiveram sua indianidade empurrada para o apagamento nos lugares mais antigos de colonização do Pará — a região metropolitana de Belém, o Baixo Tocantins, o Marajó.

Eu venho do Baixo Tocantins. Meu povo, os Tupinambá, têm raízes profundas em Mutuacá e Mojú. Meu tio tem 105 anos. Meu pai, hoje respirando com cuidado por causa da fibrose pulmonar, carrega uma memória territorial que precisei registrar com a gravidade que ela merece. A narrativa dos nossos mais velhos não pode ser sequestrada por seletividades institucionais, interesses de retomadas artificiais ou discursos vazios de quem nunca sentiu o peso do deslocamento nem a solidão da chegada à cidade sem rede de apoio.

A minha retomada é outra: é gradual, séria, com documentos da oralidade, com vínculos reais, com responsabilidade ancestral — completamente distinta dessa retomada banalizada por setores urbanos que reivindicam origens abstratas, distantes, sem diálogo com as famílias indígenas ribeirinhas que realmente viveram o apagamento.

No meio disso tudo, atravesso processos jurídicos árduos: a denúncia ao MPF, a ação judicial sobre o concurso do IFPA, o apoio jurídico conquistado com muita luta. Tudo isso mexeu profundamente com a minha saúde emocional. Reaprendi a respirar, a me centrar, a evitar a armadilha da sensação de perseguição constante — um abismo psicológico que já conheci em períodos anteriores.

E há ainda o caso gravíssimo envolvendo um cidadão da rádio Murukutu, com histórico real de violência contra mulher. O processo, finalmente, caminha para sentença — e quando ela vier, muitas narrativas distorcidas vão ruir. Da mesma forma, outra liderança masculina de Santarém revelou, pela deslealdade e má fé, práticas que fragilizam o movimento indígena em Belém — justamente no momento em que eu mantinha um diálogo aberto e transparente na minha gestão do Fórum Parawara.

Ele não me deixou falando sozinha; ao contrário: nós fizemos o debate ao lado do MPI, que, com muito custo e esforço, tem buscado construir a demarcação de direitos dos indígenas nas cidades de forma responsável, respeitosa e fortalecedora. Sentamos à mesa com diversas lideranças e entidades que demarcam essa luta histórica — e ali, mais uma vez, a discussão sobre sociodiversidade indígena se impôs, como nos lembra Gersen Baniwa em O índio brasileiro: o que você precisa saber sobre os povos indígenas no Brasil de hoje. Ainda que a questão indígena urbana não seja o foco central do livro, Baniwa reafirma algo essencial: existimos também fora das aldeias oficialmente reconhecidas, nas cidades, nas margens, nas transições forçadas, sejam aldeados, ribeirinhos, citadinos, periféricos, migrantes, remanescentes, retomados. Seu trabalho reforça a importância de demarcarmos — narrativa, política e institucionalmente — os territórios e organizações indígenas que se constituem e resistem no espaço urbano.

E ainda assim, até o governo que hoje abre caminhos precisa encarar suas próprias sombras. A chamada PEC da Devastação, a Lei do Licenciamento Ambiental, chegou envolta em promessas de avanço, mas também carrega perigos que já conhecemos de outras eras. Lula vetou o que pôde, segurou o que era possível, e mesmo assim o Congresso segue tentando derrubar os poucos respiros que restaram.

No meio dessa disputa, o Pedral do Lourenço transformou-se em metáfora e ferida: é a rocha antiga do Tocantins, um corpo ancestral que querem explodir em nome da pressa dos cargueiros e do apetite do mercado. A licença saiu apesar dos gritos do rio, apesar das vozes indígenas, ribeirinhas e quilombolas que sabem exatamente o que significa quando se mexe naquilo que sustenta a vida. E é justamente aí que se revela o paradoxo que enfrentamos: um governo que abre portas históricas para nós, mas que ao mesmo tempo precisa negociar com forças que insistem em avançar sobre a terra, a água, a memória — sobre o nosso próprio corpo-território.

Enquanto isso, durante a COP30, territórios legítimos conseguiram seus documentos de demarcação, com verdade. Mas aqui no Pará enfrentamos políticas indígenas sendo aplicadas de forma arbitrária e violenta. O concurso do IFPA é a prova recente dessa ferida institucional.

Na marcha da COP30, encontrei apenas o Cacique Ramon Tupinambá e a parente Nádia. Dois reencontros que me aqueceram. Em fevereiro estarei em Salvador — parte para trabalhar, parte para respirar. Quero descer ao território dele. Ramon esteve comigo em março de 2024, quando eu estava em um dos momentos mais frágeis da minha vida. Nenhum de nossos encontros é acaso — assim como não foi por acaso encontrar Nádia naquele dia turbulento.

Ambos têm algo raro no movimento hoje: coerência, generosidade e lucidez diante das disputas partidárias que têm adoecido as articulações indígenas. Sou filiada ao PT, mas não permito que qualquer estrutura partidária interfira na relação com meus parentes, sobretudo com os povos do Xingu–Altamira, com quem hoje mantenho responsabilidade direta.

Não sou contra que a juventude de Belém, de qualquer classe, debata o apagamento indígena da cidade. Mas retomada indígena é outra coisa: é memória viva, documento oral, linhagem, responsabilidade territorial. Não é discurso solto de origem distante, sem vínculo com as famílias que resistiram ao apagamento.

Meu pai viveu apagamento. Minhas primas quase não conseguiram se reconhecer. A responsabilidade que carrego agora é enorme — e é também minha forma de honrar a vida deles.

E sim nos veremos em outras marchas e em outro fevereiro. Quando a data estiver fechada, aviso.
Afinal das "contas" sigo — com respeito, verdade e memória viva — ao lado de quem sabe que a luta pela demarcação começa dentro da própria memória e do corpo-território diverso.