Machismo estrutural e violência de gênero no contexto indígena: da aldeia ao urbano



Por Alanna Souto Cardoso Tupinambá

O maior sintoma da normalização da violência de gênero manifesta-se quando o agressor passa a ocupar o lugar de vítima dentro de coletivos que lidam com conflitos, críticas e divergências políticas. Essa inversão opera para eliminar o contraditório, reproduzindo desrespeito, má-fé e condutas licenciosas, especialmente contra lideranças indígenas mulheres, sejam elas urbanas ou oriundas de aldeias, que passam a ser alvo de deslegitimação quando, em disputas de poder, afirmam posições autônomas e exercem liderança política, científica e projetos a frente de comunidades.

Os povos indígenas que hoje vivem nas cidades não estão nesses territórios por escolha individual, mas em decorrência de processos históricos de expulsão, violência colonial e reorganizações forçadas de suas formas de vida. Nesse cenário, a normalização da violência de gênero assume um caráter perverso de poder quando o agressor é acolhido, legitimado e protegido, mesmo diante de registros, denúncias e testemunhos, convertendo a violação em objeto de relativização política.

Em paralelo, mulheres indígenas passam a ser desacreditadas ou isoladas por esse mesmo grupo, em especial por uma Santarém arbitrária, que se articula para manter o controle de uma narrativa hegemônica Tupinambá em Belém — e, por extensão, na Amazônia brasileira. Esse controle se sustenta pela força do poder econômico, pelo abuso de poder simbólico e por práticas reiteradas de assédio moral, que operam para silenciar dissensos, deslegitimar denúncias e preservar posições de influência.

É fundamental distinguir o reconhecimento histórico de que a cidade de Belém foi construída sobre território indígena — algo que pode e deve ser afirmado por qualquer cidadão comprometido com as realidades históricas da fundação da cidade — da apropriação identitária por sujeitos que se autodeclaram indígenas sem memória de pertencimento comunitário, sem trajetória coletiva de deslocamento forçado e sem vivência direta da violência colonial, como se observa no caso do grupo Mairista de Belém, cuja atuação tem sido marcada por um ativismo artístico instrumentalizado, de caráter sectário, orientado por práticas machistas, pela desqualificação pública de divergências e pela produção recorrente de acusações infundadas, comprometendo o debate político responsável e a convivência democrática no campo indígena urbano. Essa apropriação, descolada da experiência histórica concreta, produz disputas narrativas artificiais, movidas por interesses individuais, egos políticos e poder econômico e, por fim, enfraquece o debate responsável sobre políticas públicas voltadas aos povos indígenas em situação urbana, tanto no plano de fato quanto de direito.

No meu caso, enquanto mulher indígena e liderança eleita por um pleito coletivo de indígenas de Santarém, do Xingu e da região metropolitana de Belém — articulação que se organiza por meio da fundação do Fórum Parawara de Indígenas em Contexto Urbano, Ribeirinho e Rural — assumi responsabilidade pública direta na condução de agendas institucionais. Fui uma das responsáveis pela 1ª sessão pública na ALEPA voltada a debater e encaminhar políticas públicas para indígenas em contexto urbano e periurbano, a partir de demandas coletivas e de legitimidade construída no território político-organizativo dessas populações.

Ainda assim, fui colocada por esse grupo como "inimiga" em disputas anteriores, justamente por sustentar posições críticas, por confrontar práticas autoritárias e por recusar a captura da agenda indígena por interesses individuais, poder econômico e controle de uma narrativa única.

É extremamente grave que um sujeito que reproduziu violência de gênero — com registros, testemunhas e dossiê documentado — seja posteriormente acolhido dentro de referências simbólicas do povo Tupinambá, como se nada tivesse ocorrido. Isso não se trata de neutralidade, mas de normalização explícita da violência. Trata-se da reprodução do machismo estrutural operando com dois pesos e duas medidas, onde homens agressores são protegidos e mulheres indígenas são desacreditadas.

Observa-se, ainda, a cooptação da narrativa por meio do poder econômico por parte de uma liderança indígena mulher que reside no Sudeste do país, que se autodeclara membro de uma aldeia recentemente fundada no oeste do Pará e que busca se impor, de forma extremada, como referência legítima de uma narrativa indígena. Essa atuação se dá de maneira irresponsável e agressiva frente a qualquer divergência política, crítica ou posicionamento distinto. No exercício dessa lógica de poder, antigos adversários — inclusive sujeitos com histórico de agressões contra mulheres — passam a ser convertidos em aliados, não por qualquer processo de responsabilização ou reparação, mas por conveniência estratégica. Trata-se de uma forma de liderança orientada pelo ego político, pelo poder de compra, pela capacidade de articulação simbólica, pela circulação privilegiada em determinados espaços e pelo controle discursivo, produzindo um falso consenso e promovendo o apagamento deliberado da violência cometida.

Essa postura manifesta-se de forma reiterada diante de qualquer divergência política, crítica ou posicionamento distinto. Em episódio recente, essa mesma liderança chegou a acusar um professor universitário de racismo por este ter demonstrado, de maneira fundamentada, que "Mairi" não constitui um nome originário de Belém, mas uma leitura simbólica de caráter acadêmico de outro professor da mesma instituição e nem por isso se acusaram, afinal a chave da ciência, " em tese" , não reside no pensamento único e totalitário. O que o grupo Mairi Vive parece sistematicamente perder de vista é a necessidade de reinterpretar a história a partir da contemporaneidade comunitária, considerando as trajetórias concretas das famílias indígenas remanescentes deslocadas para a capital, sobretudo aquelas oriundas das regiões mais antigas de colonização próximas a Belém.

A situação se agrava quando uma poetisa de Belém afirma publicamente que o registro de um abraço ao agressor "é tudo", relativizando a gravidade da violência denunciada. Trata-se de uma reprodução explícita do machismo, agora operando também no campo da arte, contribuindo para o esvaziamento do senso crítico e para a normalização da violência de gênero.

Espera-se que qualquer gesto simbólico, especialmente quando realizado por um pajé indígena, esteja acompanhado de responsabilidade ética, orientação espiritual e compromisso com o sagrado feminino, tal como preservado pelas majés das comunidades indígenas do Baixo Tapajós, que não podem pactuar com ameaças, agressões ou violências de gênero e nem com outro ser humano. Um gesto dessa natureza só pode ser compreendido como legítimo quando vinculado à assunção das consequências dos atos praticados, incluindo delitos, ameaças e acusações caluniosas. Essa é a conduta esperada de uma liderança espiritual indígena comprometida com a justiça, a verdade e a proteção das mulheres.

O que se observa, portanto, é um campo de disputa que não enfrenta o debate sobre políticas públicas, não se responsabiliza pela educação escolar indígena e não assume compromisso com a realidade concreta dos povos indígenas e remanescentes migrantes que vivem na cidade de Belém. Trata-se de um campo sustentado por capital econômico, pela apropriação simbólica de referências Tupinambá e por documentos históricos coloniais genéricos (referentes a uma "Mairi" genérica), sem lastro interpretativo contemporâneo compatível com a realidade indígena urbana.

Essa liderança ativista, frequentemente deslocada do território urbano de Belém, não assume responsabilidade com as mulheres indígenas que denunciaram e judicializaram a violência. Ao contrário, contribui para o silenciamento, para a invisibilização e para a mercantilização da identidade indígena, transformada em performance cultural, produto simbólico e narrativa de consumo.

É aqui que reside o perigo da história única: a produção de violência, o fanatismo, a reprodução do machismo estrutural e a normalização da agressão, acompanhadas de um progressivo esvaziamento do senso crítico. Esses processos não permanecem no campo simbólico ou discursivo; ao contrário, desdobram-se em violações concretas, que culminam em casos criminais e judicializados, com impactos reais sobre a vida, a dignidade humana, o respeito à docência responsável, dialógica e crítica, bem como sobre a segurança das mulheres indígenas.