Algumas concepções sobre o Eixo "Mulheres em Contextos Específicos" na IV Conferência Municipal de Políticas Públicas para Mulheres
POR ALANNA TUPINAMBÁ.
BELÉM , 29 de setembro de 2021.
Participei, nos dias 29 e 30 de setembro de 2021, da IV Conferência Municipal de Políticas Públicas para Mulheres, organizada pela Coordenadoria da Mulher (COMBEL) e por órgãos parceiros do município e do Estado. A conferência foi bem conduzida, e um ponto de destaque do plano municipal lido pela coordenadora Lívia Noronha chamou a atenção de algumas participantes: o eixo intitulado "Mulheres em Contextos Específicos", que agrupava:
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Mulheres negras
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Mulheres quilombolas
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Mulheres indígenas
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Mulheres ribeirinhas
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Mulheres afro-religiosas
Uma participante negra questionou a organização dessas categorias em um eixo separado, apontando que isso poderia representar uma forma de segregação dentro do próprio campo das lutas sociais e raciais, especialmente à luz da trajetória do movimento negro.
Pedi então a palavra para esclarecer que essa categorização está em consonância com diretrizes nacionais e estaduais de políticas públicas para mulheres, como indicou a professora Eunice da UFPA. Trata-se de um reconhecimento político, histórico e jurídico das identidades e territorialidades específicas dessas mulheres — oriundas de povos indígenas e comunidades tradicionais. Essas categorias têm base nas lutas constitucionais e sociais travadas há séculos no Brasil por direitos, territórios e reconhecimento.
Corpo, território e racialização
É fundamental compreender que há mais de 500 anos os povos indígenas resistem às invasões e à violação de seus territórios. As comunidades ribeirinhas, quilombolas, povos de terreiro e de tradição da pajelança cabocla enfrentam, há mais de 300 anos, múltiplas formas de opressão. Mesmo quando deslocados para as cidades, esses povos mantêm vínculos com seus territórios e formas próprias de organização.
Essa luta ancestral culmina em momentos históricos como a Constituinte de 1988, quando lideranças indígenas e negras, como Ailton Krenak, denunciaram a tentativa do Estado brasileiro de invisibilizar essas pautas. Krenak, à época com quase 40 anos, discursou com contundência em nome da União das Nações Indígenas, emocionando o país ao reafirmar os direitos originários, em uma articulação histórica que envolveu a Aliança dos Povos da Floresta, formada por indígenas, ribeirinhos, quilombolas e seringueiros.
Nomes como Chico Mendes e Marina Silva marcaram esse processo. Chico foi assassinado dois meses após a promulgação da Constituição de 1988, deixando um legado de luta pela Amazônia baseada na diversidade, no diálogo e na valorização das existências locais frente à lógica do extrativismo predatório. Marina, sua companheira de lutas, continuou essa trajetória.
Apagamentos e violências midiáticas contemporâneas
Hoje, enfrentamos novas formas de perseguição e silenciamento — inclusive nas redes sociais. Minha conta pessoal no Twitter, por exemplo, foi suspensa pela segunda vez após denúncias relacionadas a críticas políticas que fiz à elite econômica e intelectual brasileira. Um grupo organizado denunciou minhas postagens em inglês, marcando mais uma tentativa de censurar vozes dissidentes, especialmente de mulheres pesquisadoras negras e indígenas.
Curiosamente, essas perseguições não recaem com a mesma força sobre mulheres negras que ascendem a posições de governo institucionalizado. E embora celebremos tais avanços, é necessário problematizar o incômodo que parte das elites sente quando mais de uma mulher negra ou indígena ocupa lugares de poder.
O corpo como território político
O eixo "Mulheres em Contextos Específicos" é fundamental porque reconhece a territorialidade do corpo racializado como espaço de luta. O corpo da mulher negra, da ribeirinha, da quilombola, da indígena, da afro-religiosa carrega marcas históricas de opressão e resistência. São quase 400 anos de escravidão negra, e o sistema capitalista segue racializando, mercantilizando e objetificando nossos corpos. O corpo feminino racializado é, portanto, território político e de resistência.
Este entendimento é respaldado pelo Decreto nº 6.040/2007, que reconhece os povos e comunidades tradicionais como grupos culturalmente diferenciados que mantêm formas próprias de organização social e territorialidade, fundamentais à sua reprodução cultural, social, religiosa e econômica.
Art. 3º, incisos I e II – Decreto nº 6.040/2007:
I - Povos e Comunidades Tradicionais: grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica.
II - Territórios Tradicionais: os espaços necessários à reprodução cultural, social e econômica desses povos, sejam eles utilizados de forma permanente ou temporária.
E quanto às mulheres LGBTQI+?
Como mulher indígena e bissexual, não me sinto excluída do processo ao reconhecer que mulheres LGBTQI+ devem ser organizadas em segmentos próprios, com outras demandas de contextos específicos que lhes atravessam: gênero; sexualidade e orientação sexual, saúde, situação de rua, contexto prisional, vivência com HIV, deficiência, entre outros. E outras interseccionalidade que as abalam essas mulheres quando fora das identidades raciais e/ou de territorialidades étnicas.
Não se trata de hierarquizar opressões, mas de compreender que os eixos de luta por território, etnicidade, racialidade e ancestralidades exigem uma organização distinta ao passo de unificarmos nossas forças considerando nossas diversidades, distinções e classes socias, construída a partir de histórias coletivas específicas e de longa duração.